ILUSÕES

Luis Garcia/ Outubro 2, 2010/ Contos/ 0 comments

“Cheira a infância, mas só o saberemos quando for recordação”

O som dos passos a subir as escadas fez presente aos seus ouvidos aquilo que o resto do seu ser queria poder ignorar. Como se cinco minutos possuíssem um valor monetário negociável o suficiente para valer a pena regatear o preço, e por sorte granjear o seu peso em pura preguiça.

Fingia sempre que se encontrava abandonado ao mais profundo dos sonos, descansando e abraçando a cor de cada um dos sonhos que lhe fosse permitido visitar. Orgulhava-se de uma maneira muito própria, de conseguir manter a ilusão aos olhos dos outros, tal como mais tarde viria a lamentar, em igual medida, a falta de talento para repetir as façanhas sonolentas de uma juventude com acontecimentos que parecia poder controlar.

Na idade de todas as fantasias, sabia que uma respiração suave e uma carinha serena lhe arrancariam ao relógio, no mínimo mais dois ou três minutos, parecendo isso que pudesse naquele espaço de tempo sem tempo, varrer a preguiça que lhe ia no corpo. E dava-se ao seu pequeno teatro.

Quando dentro do timing planeado, sentiu a mão pesada do avô, no braço que escondera estrategicamente do outro lado da cama, caído, como que em esforço tentando tocar o chão, fez mais uma encenação, mordiscou meia dúzia de vocábulos e virou-se para o outro lado. Como que aquela voz insistente possuísse o poder de lhe devolver a energia que julgava, também ela adormecida, murmurou qualquer coisa imperceptível, como se quisesse mostrar uma cara chateada, e abriu os olhitos. Aguentava por um segundo o sorriso que se queria soltar, e depois dava um salto para o chão e corria para o duche.

Ao chegar à escola, duas horas mais tarde, confirmou sem grande surpresa o encontrar de cem escudos no bolso das calças. Quase que podia acreditar ter participado de um truque de ilusionismo do avô, e perguntou-se como conseguia ele repetir tantas vezes o mesmo gesto sem que a sua audiência desse por isso e, por segundos, arrepiou-se. Mais tarde, quando aquela tarde fosse muito antes do dia em que voltasse a pensar sequer no tempo que o tempo tem, haveria de dar mais valor ao tempo que passou com o avô e com a avó.

Entrou na sala, pousou a mochila e preparou o seu caderno numa página por estrear. Olhou para o lado, piscou o olho ao melhor amigo e fez-lhe sinal para que olhasse para a fita que a professora trazia hoje na cabeça… Que foleiro. Naquele momento de riso contido, olhou comprometido para o tampo da carteira, e invadiu-se de uma pequena sensação de que um dia olharia para trás e sentiria saudade destes dias em que a rotina se confundia com a descoberta.

No recreio havia que resistir à tentação de pensar em gastar o dinheiro no almoço e guardá-lo para um propósito bem maior, que podia ser a ultima caderneta de cromos, daqueles que já nem sequer precisavam de cola, e que por isso eram muito falados no pátio da escola. Mas uma qualquer voz, que não pôde nunca encontrar fora de si próprio, impedia-o sempre de criar a sua própria equipa e ganhar os campeonatos com que sonhava todas as noites.

O dia correu com aquele ritmo que marcava no relógio o tempo que chegava para estudar, brincar e dormir e ainda ficar com tempo para gerir, como se tivéssemos uma conta em que não soubéssemos o que fazer com tanto juro que nos era ofertado. E na hora da saída, aquela alegria de aguardar pela hora do comboio, e no caminho feito para voltar a casa, o dinheiro que sobrara era para comprar o jornal desportivo e discutir com a autoridade que se encontra do alto nos nossos dez anos, com substância, as tácticas utilizadas pelos treinadores dos clubes grandes.

Quando à segunda paragem viu o nome do seu apeadeiro, desenhado naquela placa branca, suja pelo tempo que passara, correu porta fora para conseguir passar à frente do comboio antes que este partisse. Esperaria anos até que reprovasse esta e outras tonteiras, que lhe davam um sabor que jamais voltou a poder encontrar nas mesmas situações, apenas porque depois medimos cuidadosamente cada passo que pretendemos dar.

A hora de jantar anunciou-se, e já ele tinha gasto mais um joelho na brita que coloria as suas quedas de pequena estrela do campeonato da rua e distraiam ligeiramente a preocupação que tinha, tinha sempre, em saber se a Rosinha o tinha visto marcar aquele golo. E como os jogos eram muito a sério, e como estivera ciente da vitória da sua equipa, e ainda não tinha conseguido o que pretendia, ainda antes de responder à chamada da avó, e embora sentisse a maior vergonha do mundo, não negou um beijo de boca à Cláudia pernas de alicate, por paga de aposta perdida. E como que prenhe de remorsos, soube ali que tinha de jurar à Rosinha que jamais tocara naqueles lábios proibidos

E a Rosinha, com os seus quase nove anos, pensou que os onze anos já feitos da rival representavam uma diferença muito, muito grande, e que o rapaz nunca poderia casar com alguém que fosse assim tão mais velho e o seu coraçãozito sossegou, permanentemente, ou pelo menos, até ao recreio do dia seguinte na escola. Ao jantar, porque o dia foi longo, pareceu-lhe que as pernas tinham ouvidos plantados nos pés, pois correram ligeiras ao terceiro aviso mais sério, porque ele também já adivinhava que depois havia aquele bolo, saboroso, que a avó fazia tão bem.

De peça de fruta na mão, com a avó ainda a dizer qualquer coisa, achou que era altura para ir comparar a colecção de berlindes com o filho do vizinho da frente. E porque não se sentiu dono do seu tempo, soube esperar para sentir naquele instante, embora não o pudesse explicar convenientemente, que tudo aquilo que não conseguira fazer hoje, haveria de realizar senão amanhã, no outro dia depois. Porque há nos seus dias a magia que escolhemos na infância e depois escondemos, como que envergonhados, quando estamos demasiados ocupados e entretidos a parecer que somos todos gente grande.

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