O DEDO NO GATILHO

Luis Garcia/ Outubro 5, 2010/ Contos/ 0 comments

“Egoísmo, ansiedade e outras maleitas a carecer de antidepressivos”

Octávio Libertino estava apenas a um passo de concretizar o objectivo que traçara para si próprio, no momento em que descobrira que toda a sua existência não passara de uma encenação. Talvez estivesse a ser demasiado dramático, provavelmente estaria a sê-lo desde o primeiro momento, mas caramba, agora que ultrapassara, ele também, os limites que a mesma existência lhe impusera, por decoro, educação ou tradição, estava, sem dúvida, na hora de tomar a grande decisão.

Sem grande pressa, Octávio Libertino manteve a mão esquerda no revólver que encostara dois minutos antes à cabeça de Dolores Mil Homens, e procurou no bolso esquerdo da sua camisa, o maço de tabaco que guardara no princípio da manhã. Nunca fumara na vida, mas agora aprendera a tentar gostar de cada um daqueles cigarros light, claro está, que fumava com sôfrego como se por milagre, o fumo lhe trouxesse a paz que não conseguia encontrar.

Puxou a primeira baforada e voltou a olhar para Dolores Mil Homens, esta tremia e tentava alinhavar palavras, como se isso tivesse o poder de travar o indicador que Octávio Libertino colocara de guarda à nuca da pobre mulher. Travou pela primeira vez, engasgou-se e tossiu violentamente, era bem mais fácil fingir que fumava regularmente do que tentar fazê-lo, confundia-o como raio poderia alguém tirar prazer de uma coisa tão mal saborosa, voltou a tossir mas persistiu e travou a segunda vez.

As primeiras lágrimas sulcaram a face de Dolores Mil Homens, mas a mão esquerda, aquela que segurava a arma mostrou que há horas em que se não pode vacilar e tornou mais forte o contacto do cano com a cabeça que tremia, como se uma febre orvalhada por suores frios viesse de repente tomar de assalto aquele corpo. Octávio Libertino sentiu que Dolores Mil Homens desfalecia e, talvez por isso, quis tornar o momento uma soma de todas as frustrações que lhe invadiam o intimo e puxou o gatilho.

Ao som em falso dado ao vazio que deles se apoderara, respondeu Dolores Mil Homens com grito de terror que mais não fez do que interagir com o seu sistema urinário. Octávio Libertino resmungou por causa do verniz do seus sapatos ao mesmo tempo que atirava o revólver para trás das costas e forçou com a mão direita a cara de Dolores Mil Homens, para que olhos nos olhos, as palavras surgissem em catadupa e pudessem falar do que entre eles se passara.

Sempre que os olhos de Dolores Mil Homens ficavam à distância de um beijo, Octávio Libertino sentia a cabeça envolta numa névoa da qual não conseguia escapar, as pernas traiam o seu momento e o próximo segundo encontrava-o invariavelmente estendido no chão e o vazio tomava o seu pulso.

O trémulo da mão vagueia em busca da garrafa que ainda pensa encontrar ali, à distância que pensara encontrar Dolores Mil Homens. Um movimento mais brusco provoca num segundo o quebrar do recipiente e um corte na sua mão esquerda, adrenalina suficiente para perceber que não há nenhuma Dolores Mil Homens, apenas Octávio Libertino e o seu mundinho hipócrita.

Entre a confusão que grassa em todos os seus sentidos, as vozes invadem Octávio Libertino mais uma vez, pedem mais uma garrafa não sei do quê e perguntam como é possível que a vitima tenha caído da maca, e depois mais vazio. A mão não está cortada, apenas o corte que sente é aquele que ninguém conseguirá sarar.
Mais um momento de si, vozes e luzes, memórias… Dolores Mil Homens e Octávio Libertino felizes, e a ultima parte que lhe parece tão irreal. O sabor a álcool que ainda ferve entre os seus lábios, ou o odor que não consegue arrancar das mãos que teimam em não se fazer mandadas para tudo aquilo que ele queria fazer. Pede um cigarro, mas a voz foge e ele sente novamente aquele ímpeto de ir mais além que no momento anterior, abre os olhos enfrenta o momento das luzes e vozes que se confundem e vê Dolores Mil Homens a um passo de si.

Não consegue prosseguir o seu papel e rompe em farpas de um desgosto que não pode apagar. Dolores Mil Homens já não pode ouvir as suas desculpas, não pode sentir o seu toque, não pode sentir a sua culpa, não pode sequer sentir o salgado que cai gota a gota sobre os seus lábios. O pano cai.

Na mão esquerda de Octávio Libertino estivera apenas minutos antes o gatilho com que abastecera de combustível a velocidade que queria atingir. Talvez ainda pudesse recordar o olhar assustado de Dolores Mil Homens e as palavras dela, que o seu pensamento não quisera descodificar, ou talvez fosse apenas uma forma que o seu remorso tinha agora para falar com ele.

Minutos antes povoara o seu pensamento com a vantagem e desvantagem de optar ou não por um combustível que fosse mais light para o seu bolso, e procurou-se quando ao digitar o ok da máquina multibanco do posto, ouviu em tom de conversa alheia suposições acerca de aumentos de preços já aumentados.

A encenação terminara. Dolores Mil Homens já ali não estaria, quando os lábio de alguém que talvez nem sequer conhecesse, voltassem a chamar a sua atenção de forma mais célere que o hálito fresco que Dolores Mil Homens lhe costumava oferecer, ainda que fosse para contrariar as coisas que em si mais guardava como certezas.

No próximo acto, só a involuntariedade do momento e a certeza de tudo aquilo, a que de uma forma quase insana, se pudesse agarrar como se cada pedaço de presente fosse realmente seu. Como um dia, quase tinha a certeza agora, pudera chamar de seu o amor que sentira por Dolores Mil Homens.

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