A PRIMEIRA VEZ

Luis Garcia/ Setembro 28, 2010/ Contos/ 0 comments

“Da vontade de experimentar coisas novas e da necessidade de o fazer”

Quando finalmente feriu o quente das suas mãos com frio do metal, deu-se ao pequeno luxo de poder sentir um calafrio percorrer-lhe todo o seu corpo, como uma vaga que adivinha um momento de receio por controlar. Largado o pedaço de ferro, foi sentar-se no chão, como se por momentos, fosse aquele o lugar mais confortável que pudesse ousar encontrar para si.

Sabia exactamente o tempo de que dispunha. Sabia ainda de cor a tabuada e podia fazer de cabeça as contas que realmente quisesse. Sorriu ao mesmo tempo que acendeu um cigarro, cravado ao maço que comprara horas antes na estação de serviço. O isqueiro mostrava-se agora quase que um desafio, doíam-lhe a porra dos dedos da mão esquerda, e a sensibilidade de que necessitava não era aquela que estava ao seu alcance de facto. E soltou uma gargalhada com a ironia do momento.

Duas horas antes, pensou com a chegada dos primeiros sinais de fumo expelidos pelo seu aparelho respiratório, duas horas antes estava longe de tudo aquilo e no entanto, sentia agora, toda a sua vida fora um breve caminho paralelo à escolha que conseguira fazer em dois segundos.

Lembrou-se, de repente, que alguém lhe dissera que aquela, a sua, seria recordada como sendo a “Geração Rasca”. Fez um esforço para adivinhar o nome da mente brilhante do politico que os impostos dos seus pais haviam pago, para, entre outras coisas, proferir magníficos pensamentos como aquele, mas não foi capaz.

Fez uma careta em que o seu nariz torceu ligeiramente para a direita, como quem tenta obter acesso a uma zona privilegiada da memória, ou então simplesmente como quem enfrenta uma necessidade fisiológica mais batalhadora. O caso é que naquele ano estava bem longe de compreender o verdadeiro alcance daquela conjugação e sinceramente ignorava por completo o seu real significado.

O liceu dera-lhe os sonhos que descobrira todas as manhãs a partir desses primeiros dias de juventude; dera-lhe as raparigas que, gostava de pensar, engatara (e não o contrário) e os amigos que continuavam a sê-lo apenas na vaga de pensamentos que enfrentava de quando em quando, quando se predispunha a uma sessão de melancolia a roçar o ridículo. Havia ainda que lembrar as bebidas, os cigarros, a leve experiência do seu ser com as também leves exultantes drogas que conhecera. Ah sim ! E aprendizagens, muitas aprendizagens e conhecimentos.

No liceu, contava mais tarde em noites de bebedeira, perdera a virgindade com uma beldade que ninguém parecia conseguir lembrar, não tanto pela quantidade de álcool ingerida, mas provavelmente pelo simples facto de ser mentira, não uma verdade toldada pelo mesmo álcool, mas sim um acontecimento pintado pela sua mente. Sinceramente, também não interessava assim tanto.

Agora, esse tempo de liceu, parecia tão distante como o pedaço de ferro caído a dois passos do seu pé direito, deixando-lhe uma tentadora ideia de poder escolher. Escolhera ganhar a vida a fazer qualquer coisa que não carecia dos conhecimentos que deveria ter adquirido com mais enlevo e paixão, quando se sentava nos bancos da escola.

Que raio de porra, nunca tivera um professor que se dignasse mostrar-lhe porque era importante perder aquele tempo precioso, que cheira a juventude por todos os poros, queimando pestanas e ouvindo raspanetes. Mentia tão mal, tivera um, dois talvez três professores, que recordava rapidamente se estivesse predisposto para isso. Ah e claro, o pai! Dava-lhe vontade de testar até que ponto resistia o progenitor aos seus actos que classificava agora de rebeldia, pois na altura pareciam-lhe uma verdade que só não via quem perdera tempo a envelhecer.

A célebre PGA de 92 ensinou-lhe várias coisas. Entre as mais importantes, disse-lhe claramente o quanto valiam doze anos de escola, sem repetições pelo meio. A universidade passou a ser um lugar distante para onde partiam a maior parte dos seus amigos e amigas. A humilhação foi breve. Sentiu-se o maior da primeira vez que num fim-de-semana festivo pagou uma rodada de cerveja barata com o produto do seu primeiro ordenado.

Pastilhas elásticas, batatas fritas, sumos e cadernetas de cromos, do ramo dos seguros à propaganda médica, vendera papeis e comida. Vendera ideias, com a técnica que se pode apurar com o avanço da experiência que nasce da necessidade crescente que temos de ganhar sustento, seja lá o que for que a palavra signifique, para além do sentido cada vez mais redutor que os dias difíceis camuflados de palavras estranhas, como inflação ou não sei o quê haveriam de trazer.

Boa vida. A timidez do liceu foi-se, quase como por magia, no dia em que perdeu o primeiro emprego por falta de vocação para uma área em que a vocação, ela própria, lhe parecera a ultima qualidade exigida. Dissera-lhe um homem gordo de bigode, por acaso o seu patrão, que o mais importante, mais ainda que boa apresentação, que ele tinha, educação, que ele tinha e força de vontade, que por necessidade também tinha era vender, e de facto ele não vendia, pelo menos não tanto como devia.

Recostou a cabeça na parede atrás de si e fechou os olhos, tantas recordações, pensou para si. No mesmo momento em que o cigarro chegava ao fim, um ameaço de tosse, talvez catarro a puxar mais uma catadupa de pequenas histórias guardadas no mais íntimo do seu íntimo. Ironicamente apenas lhe surgiam imagens dos momentos em que tratara o sucesso por tu, porque sim, isso também acontecera, e num segundo de misto de alegria e tristeza deixava-se arrastar para uma angústia ainda maior.

Quando pequeno, adorava o som da moeda que caia na caixa metálica, apêndice daquele brinquedo que simulava uma nave espacial. O movimento por dois minutos e a panóplia de sons que os pequenos botões no painel proporcionavam, davam azo à sua alegria de criança. O som da vaca, da galinha, do laser e a sirene…

Os sons confundem-se. Uma sirene rasga o silêncio que há tanto tempo já colocara no seu coração, e como que sacudido pelo movimento inerente ao astronauta que fora em criança, faz dos olhos a ponte para os transeuntes, que se aglomeraram entretanto em frente da montra daquela loja, que é desde há vinte minutos o cenário da sua tragédia particular.

Ainda que tão longe daquela ideia que lhe ficara da juventude, o mesmo termo, o “rasca” foi uma palavra das que julgou ter ouvido de um dos seus espectadores de primeira fila, daqueles que alimentam de desgraças alheias e afins. Sorriu, “á rasca” fora aquilo que ele sentira enquanto se dava ao encontro de uma das faces mais estranhas do sucesso, como se apenas com pedras e bastões se pudesse fazer ouvir. Esta noite, ainda que a caminho da esquadra da cidade, aqueles lábios saberiam de novo o que era sorrir. Ah é verdade, e esta noite, pelo menos até que a liberdade voltasse, não voltaria a saber o que era sentir fome.

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