PRIMEIRA SESSÃO

Luis Garcia/ Setembro 23, 2010/ Contos/ 0 comments

“Um segundo para além de ‘E tudo o vento levou’”

Sempre que voltava ao cinema da cidade, sentia a mesma sensação de descoberta que vislumbrara quando, pelas mãos dos pais, visitara pela primeira vez, aquela que seria a sala onde os sonhos parecem poder ousar aparecer.

Adorava imaginar a configuração do primeiro balcão e todos os personagens que sabia possuírem o poder de vencer a escuridão, durante cento e tal minutos. Tinha sido assim que conhecera o rapaz que se recusava em crescer, ou o feiticeiro da terra que tinha o nome de duas letras, que faziam lembrar a hora de dormir, ou ainda a menina das meias altas, que polvilhava de aventuras os sonhos que teria quando a noite chegasse e o levasse para casa para dormir.

Gostava de imaginar que as personagens dos filmes que ia vendo e conhecendo, viviam para além do final que se podia aplaudir em honra do celulóide de cada matine, e ficava às vezes nos dias que se seguiam, a perder os seus olhos no horizonte, a procurar um dia para além da ultima cena que vira acontecer.

Foi assim um dia com Rick, algures em Casablanca, ou com Scarlet, olhando para além do tempo em que Reth lhe disse que estava nas tintas, mas no fundo, no seu pensamento, ele voltaria para trás, mas o filme fora tão longo que não era possível mostrar só mais esse bocadinho.

Descobriu com as primeiras borbulhas como o rapaz se diferenciaria do menino que fora, e aprendeu a amar o corpo de Garbo ou o loiro de Bardot. Encontrou-se no alvoroço da juventude, guardando a imagem de cada momento, para a comparação que necessitava para entender cada pedaço da sua realidade.
Aprendeu a amar, tal como aprendeu a deixar-se cativar pela ideia de que os amantes podiam ir em frente, em nome daquilo que sentiam e viver, também ele, as mesmas histórias, carregadas de sentido. Ficava sentado e, ainda depois de todos os créditos, fechava os olhos e sabia naquele momento que aquela história que acabara de presenciar jamais poderia acabar ali. Entregou cada centímetro do seu sentir ao estremecer que percepcionava, quando se entregava sem hesitação ao aglomerado de sensações que o invadiam, e em cada mulher que amou nos anos que se seguiram, havia um toque que o levava de volta às matines, naquela sala, naquelas tardes, quando o mundo era todo ali.

Descobriu por si próprio que as partidas não guardam o mesmo significado, se o ponto de referência que as possibilita se deslocar no sentido contrário da grande tela, e soube enumerar as feridas e a forma diferente como saram, onde o tempo só parece acariciar o relógio num sentido. No futuro que se foi tornando o seu presente, encontrou-se vezes demais preso ao momento em que Bergman pedia para que Sam tocasse aquela musica uma ultima vez, e ficava ali, como se as lágrimas pudessem ser tocadas no piano e cantadas palavra por palavra até que a dor se fartasse daquela cena deprimente e fosse embora. Vezes demais haveria de se encontrar a tentar compreender uma forma quase ridícula de fechar o tempo naquele segundo onde sabia estar seguro, e inventar uma desculpa quase convincente para que não precisasse de voltar a chorar.

Haveria de crescer, pensar na segurança daquelas tardes que vivera, e escrever as suas páginas de história pessoal. E acreditando na mentira, que tomara a sua mão, juntaria a coragem para dizer o que guardara daqueles filmes e, se possível, contar da forma que melhor soubesse e se tivesse tempo ainda inventar uma existência com sabor de plágio.
Talvez por isso a cada separação as palavras “isto pode ser o principio” retocavam cada ponto amargo que desenhava nas suas próprias palavras, escondidas algures em si e, embora o não soubesse realmente, entregava-se a uma espera, quase um ritual feito falsa sensação de maturidade.

E descobriria que de novo a sua história, não esperava por qualquer elenco especial, com este ou aquele personagem, que pintara no futuro com sonhos de passado. Ao voltar ao cinema, encontrá-lo ainda na sua cidade, já velho e antiquado, como se a estupidez de alguns conseguisse dissociar uma palavra da outra, sabia que iria encontrar a mesma caixa de sonhos, empoeirados também eles, pelas tardes de tempo, de gargalhadas e lágrimas, que se haviam oferecido àquelas paredes, que agora mais não significavam do que uma construção velha e antiquada.

Naquela tarde de regresso, nem armas, nem amor, nem erotismo, nem romance, nem as personagens heróicas que sabem de cor o seu caminho. Apenas os sonhos, tantos sonhos, tantas tardes e ele é ainda o rapaz que se recusa a crescer.

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