A REDE

Luis Garcia/ Setembro 19, 2010/ Contos/ 0 comments

“O amor e o toque, um sentir tecnológico que encerra a paixão”

De um segundo para o outro, encontrava a cada momento que pudesse isolar da velocidade constante que caracterizava um a um, os seus dias, e descobria que lhe parecia que tinha tudo acontecido sempre assim. Custava pensar, num tempo em que todas estas ofertas, que tinham como garantidas, não estivessem uma por uma, no seu devido lugar, expectantes até à próxima utilização. Quase esquecia que um dia, tudo, todas aquelas coisas, que faziam parte das suas coisas, fora assim tudo muito para a novidade, demasiado avançado para quem descobria um ahhhh de trinta em trinta segundos. O teclado, o rato, o modem e o mail ou o motor de busca e o chat, bem o chat…

Achou-se completamente viciada muito antes de saber dominar o mínimo de “computês”, como teimava em chamar a todas estas novas coisas que ia guardando, como se ela própria pudesse recorrer ao seu disco rígido e compartimentar todas as novas informações. Mas na hora de procurar, ainda que julgadas indexadas, tudo se confundia, e no caos uma constante, o chat.

Não percebeu como se embrenhara fundo neste novo hobby, como gostava de pensar que era, e foi deixando, quase por casualidade, de fazer as coisas que até então definitivamente gostava de fazer. E passou a deixar de ir ao ginásio, porque não estava motivada, ou de ir ao teatro que a aborrecia como nunca antes o havia feito. Nem os copos com as amigas pareciam resultar, distantes demais para recordar agora e tudo culminava, numa sensação de felicidade e de à vontade, num sentir de verdadeira liberdade que consumia quando encontrava o TopBoy22 ou até mesmo o BlueEyes_Lindo, e passava horas recuperando o eu que julgava perder a pouco e pouco no dia-a-dia.

Hoje esses primeiros dias parecem-lhe tão distantes, como se pudesse comparar o prazer da banda larga com a alucinante tecnologia Rdis. Consegue olhar mais para trás, ao tempo do 56K, e vê nitidamente um botão, onde clicar com o rato dá origem ao som inconfundível de um modem que negoceia protocolos. Bem, fora isso que lhe haviam dito naquele curso de iniciação que frequentara.

Acabou tudo com o Rui, que era o namorado que aprendera a amar de uma forma tão deja vu, como os dias que lhe pareciam todos passar da mesma forma, sem que surgisse muito espaço para o romance. Foi preciso, para perceber isso, encontrar no Shakespeare_65 a alma gémea que, sabia agora, estivera sempre à distância de um trocar de palavras, que escritas parecem tão mais fáceis e carregadas de significado, do que ditas boca a boca.

Fez das horas, que eram as suas, as muitas que passou a utilizar uma qualquer plataforma de chat de um também ele qualquer site, supunha ela, brasileiro e aprendeu a expressar tudo aquilo que ia compreendendo sentir em si, através de letras e sinais de pontuação que conseguiam simular sorrisos, lágrimas e sei lá mais o quê. E quando deu por si, sabia que muito mais que uma Verónica, mais uma que se oferecia ao passar do tempo, Snow _White cabia em si como a resposta que queria saber deste grande mistério que sabia, ser ela própria.

Primeiro nas aulas, para logo de seguida acontecer no primeiro emprego, a Internet era a sua vez de ser feliz, a sua oportunidade de ser ouvida e ouvir os outros, ou, para ser mais exacto, de escrever e ler os outros, e dar sentido a um caminho que parecia cada vez mais delineado para si. Mas porque nem sequer num espaço em que o espaço ganha novo significado, em que o tempo parece muito mais passível de ser controlado, por impulsos ou quaisquer limites de upload ou download, se pode ser senhora do futuro, aquele conceito do chat entrou em crise, o site fechou e Snow_White perdeu o contacto de Shakespeare_65.

Nos dias que então conheceu a seguir, e sem saber muito bem porquê, lembrou pela primeira vez as lágrimas que o Rui havia deixado deslizar pela cara, como se pretendesse fazer um screensaver que ela guardasse sempre no seu coração, para ver com saudade quando pudesse compreender o que sentira naquele momento. Por um instante, um sorriso aflorou os seus lábios, afinal o Rui não estava completamente offline no seu coração.

Sentiu-se perdida, tentou reatar as célebres sextas-feiras à noite, mas deu por si a descobrir, uma a uma, as amigas que sabia agora, terem feito um link em frente nos seus caminhos, para terem o seu próprio site e se preocuparem com a gestão de uploads e downloads que ter uma casa para cuidar e filhos para criar obriga. Lembrou-se que nunca aprendera a tocar uma fralda. Fez a grande questão para si, como se pudesse separar completamente Verónica de Snow_White e ficou ali a ponderar nas decisões que tomara, no caminho que percorrera, nas amigas de que se afastara, na vida que não escolhera e decidiu também ela seguir em frente.

Com absoluta certeza dos novos passos a tomar, decidiu-se por criar o seu próprio endereço de e-mail, snowhite@ichmail.com, tentou snow_white, snowwhite, mas descobriu o preço da sua própria originalidade e contentou-se com o mail que conseguira criar para si. Encontrou forum’s, subscreveu newsletters e conheceu blog’s. Participou em dezenas de espaços de opinião e criou o seu blog, só para descobrir que afinal não é assim tão fácil despirmo-nos de nós perante uma plateia que não partilha, não deve partilhar, a nossa intimidade.
Nesta nova odisseia, por uma segunda Internet descoberta, deixou-se cativar por novas tecnologias e ideias, e sentiu uma sensação que arriscou comparar às que haviam sentido as suas amigas que lidavam com fraldas, quando aprendeu o que era uma rede social e soube que podia criar a sua, única e exclusiva, rede de amigos. Colocou as suas fotografias, com pose, para dar um toque de profissionalismo ao seu espaço, escolheu citações de poetas conhecidos e foi aprimorando cada pedaço da sua nova ocupação.

Um dia recebeu uma solicitação para juntar à sua rede de amigos de um utilizador chamado Rui, e de repente deu por si a visitar o espaço do Rui, aquele Rui que ela pensara conhecer tão bem. Lembrou-se dele e, num segundo instante, lembrou-se de Shakespeare_65 e sentiu saudades, estranhamente, de um e de outro. Recebeu uma mensagem do Rui e pensou em responder, escreveu um texto considerável mas, na altura de carregar no botão enviar, sentiu que era muito mais fácil dizer o que sentia ao seu Shakespeare_65 do que ao rapaz que fora seu namorado e, num segundo, pressionou com alguma dose de fúria a tecla backspace e apagou tudo o que escrevera. E não respondeu.

Quando numa quinta-feira se lembrou de ir pagar a conta da Internet, ficou a saber que o prazo tinha terminado, tentou em vão utilizar o homebanking e saiu de chinelos para alcançar a caixa multibanco no fim da rua, só para ler a mensagem que lhe dizia para procurar a caixa multibanco mais perto. E a noite chegou com uma ligação cortada no acesso à sua Internet.

Resolveu sair, dar uma volta, e mandou uma mensagem para o telemóvel da Susana, porque se sentia terrivelmente sozinha e porque lhe parecia ter ouvido que o casamento da amiga não andava assim a uma velocidade de acesso muito boa. Recebeu uma mensagem de volta em pouco mais de vinte segundos e sorriu. Uma ligação ao mundo estava garantida, pelo menos naquela noite que ia ser longa.

Riram, beberam, falaram e recordaram e beberam de novo. E a noite seguia só para Verónica descobrir que se esquecera, pela primeira vez em tanto tempo, de Snow_White algures em sua casa. Sorriu e olhou para Susana que se estava a babar, com o whisky que tentava empurrar com uma tosta mista.

Na mesma altura, do outro lado da cidade, Rui decidiu que era hora de ir dar uma a volta, beber um copo e esquecer de uma vez aquela mulher que não voltaria a ser a sua Verónica. Desligou o computador e olhou para cima da mesa da sala, onde guardava um poema, tirado de uma janela do seu computador com um copiar e colar, escrito pela sua Snow_White e dedicado ao seu (dela) Shakespeare_65.

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