QUANDO OS HERÓIS NÃO VINHAM EM DVD

Luis Garcia/ Junho 18, 2010/ Contos/ 0 comments

Quando o tempo dos heróis lhe lembrava todas aquelas tardes de criança, inventadas ao sabor da velocidade cadente de cada sonho que possuía o poder de marcar o ritmo de uma tarde de infância, permitia-se arrancar um suspiro, fechava os punhos com força e quase, quase se sentia voar.

Sempre que o sábado se fazia parte da tarde corria com aquela vontade de aprender uma nova aventura. Corria até à sala de estar da casa dos avós e sentia aquele fogo no peito e aquela sensação de formigueiro nas mãos e nos pés que, mais tarde haveria de descobrir, se chamava ansiedade.

O som electrónico e seco do ligar do aparelho de televisão, correspondia à pressão exercida pelo dedo indicador, como se por um momento mais ou menos mágico, houvesse nele uma confiança inabalável, que com o tempo julgamos por bem chamar de absurda. Ajeitava-se no sofá com aquela postura incrível, que tantas vezes desafiava a voz sabedora dos mais velhos, porque fazia mal à coluna e não sei mais o quê, como se então, pudesse perder um segundo que fosse, para parar e pensar em todas aquelas tonteiras.

Deitava olhos à catadupa de letras que lia, ou fingia ler com rapidez, como se as palavras o espicaçassem a descobrir mais uma aventura ao sabor da brisa refrescante do mar, ou quem sabe do oxigénio rarefeito de alguma montanha por conquistar e chamava com um pequeno grito a avó, para que com aquela sabedoria que só existe nos olhos dos avós, deixasse os afazeres domésticos daquela tarde e o acompanhasse, só mais naquela viagem.

E ela sabia. Ele também, embora lá naquele sitio do qual perdemos a chave com a velocidade do crescimento. Ela sabia. Sabia o quanto era importante para ele, saber que para ela também era importante descobrir o que aprenderia D’Artagnan com Athos, antes de mais uma sacudidela aos rufias do Cardeal. E ela sentava-se junto dele, naquele lugar onde batia o sol da tarde que entrava timidamente pela janela guarnecida com uma grade em forma de flor, e trazia já uma ou duas questões para lhe colocar, para se colocar também ela na história que entretanto se iniciara.

Ele sentia-se adulto por um momento, com uma opinião e uma certeza e explicava o melhor que podia, como se fosse impossível escapar à magia daquela tarde, como se aquela tarde fosse repetida vezes sem conta, e eles pudessem estar ali a fazer do tempo aquilo que realmente o tempo tem para oferecer, e os minutos passavam àquela velocidade que parece haveria de esquecer quando o menino mais tarde fosse homem. Por vezes sentia-se melindrado por perder dez segundos da acção e não compreender que mais tarde poderia rever as vezes que muito bem lhe apetecesse aquele mesmo episódio, se bem que então tudo lhe parecesse muito menos colorido, muito menos real, muito mais ensaiado e teatral e claro menos qualquer coisa, que o faria sentir que não era exactamente a mesma coisa, ver a mesma coisa, num outro tempo.

Haveria de saber mais tarde que a grande magia, não eram as aventuras em si, nem sequer o amor de Constance Bonacieux pelo jovem gascão D’Artgagnan, ou o arrepio que lhe provocava a sensualidade perigosa inerente à bela Milady. A magia não estava sequer na Terra do Nunca, ou na nave espacial Enterprise, porque ele ousava ir onde ninguém tinha ido antes dele, naquelas tardes ousava sonhar e isso, haveria de lhe fazer sentir uma saudade do tamanho do seu pensamento que na altura parecia ser feito de elástico. O descobrir de espaços novos, mundos onde apenas a imaginação humana ousava saltitar, e o compreender de que a grande magia estava exactamente naquele momento, em que sabia, podia contar com os olhos da avó, nos seus e uma alegria do tamanho do muito grande que só se pode compreender anos mais tarde, quando se não o tem.

To be continued… Knight Rider, Galáctica e os outros títulos que eram estrangeiros demais para serem recordados. Que ideia aquela de dar sequência a um episódio e deixar no ar toda uma semana de expectativa até que o sábado decidisse voltar, quando o tempo corria devagar. A semana passava então e o Domingo era azáfama para preparar os cadernos, os lápis e as esferográficas, inventar espaços novos na mochila gasta de ser arrastada no recreio da escola e a mesma paciência que a avó tivera na tarde de sábado, noutro contexto. O mesmo sentimento, tão diferente, tão igual e mais uma sensação para compreender muito depois.

As semanas pareciam iguais, todas muito organizadas e muito seguidas, como se também todos aqueles dias apenas encontrassem paralelo no sentido que tinham enquanto novo dia que se inciava… To be continued…

Agora parecia fazer muito mais sentido, quando naquele corredor do hipermercado, se descobre por sorte com as mãos num dvd, com toda aquela série, um por todos e todos por um a um preço acessível, e de uma assentada todas as aventuras para rever numa tarde de preguiça, numa postura que ninguém irá criticar. Um momento de sorte, o tal sentimento, a mão que ainda segura com fervor o dvd e a vontade de repetir, e de voltar a ver os olhos da avó.

Mais um momento, o próximo e dá por si a inventar um segundo de aventura para tentar entender que hoje a verdadeira aventura seria viver aquela tarde com a avó… sem sequer precisar daquele dvd. A magia está, estava ainda naquele sofá e ele ali à espera, como esperava pelo próximo episódio, anos antes, quando não era necessário encontrar o sentido em tudo o que nos rodeava mas apenas aproveitar e sentir e ansiar o próximo sábado… como se já naquela tarde ele pudesse compreender o verdadeiro alcance daquela frase, tão monótona por tão repetida se fazer… to be continued…

Share this Post

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

*
*