DO AMOR INSTANTÂNEO

Luis Garcia/ Junho 16, 2010/ Contos/ 0 comments

Um instante tem por valor aquilo que pode possuir de valioso exactamente um determinado espaço de tempo, mais ou menos necessário para que mais tarde, nos possamos referir a ele, ao instante, como algo de precioso que guardamos no coração, e aqui já recorremos aos “deja vus”. Este, o instante, pode ser tão curto que, embora nos assalte a dúvida da sua efectivação na nossa história pessoal, podemos de facto olhar para ele e das duas uma, ignorá-lo porque foi menos bom do que pretendíamos que fosse, ou transformá-lo em algo que não aconteceu exactamente assim. Ou então a terceira via, tão recorrente como tão maravilhosa, nunca aconteceu.

Chamemos-lhe um instante, partindo do princípio, presunçoso, de que somos donos e senhores do nosso próprio momento, para não recorrer sempre à mesma palavra, acontecimento espácio-temporal, em que acontece uma das três coisas que atrás referimos tão despreconceituadamente.

Quando se ignoram os instantes, a vida parece mais longa. Talvez seja mentira, ou nem sequer original mas desprovida das inércias dos acontecimentos pessoais, das existências carentes de Xanax e parentes mais ou menos aproximados, esta parece de facto mais cumprida, e em simultâneo doce como adocicada pode ser uma qualquer tapa às quatro da madrugada, insonsa como a manhã em que se tem de recuperar o instante em que se não parou na noite anterior.

Provavelmente existe no nosso tempo, todo o tempo de que possamos efectivamente gozar. Se demais ou não, fica depois ao critério de cada um, valorar essa coisa a que também depois acabamos por chamar instante.

Carne ou Peixe. Carne ou Peixe??? Um instante confuso demais para ser incluído com sucesso em toda a panóplia de tontearias que havia cruzado a cabeça do pobre rapaz que se achara num instante, lá está, arrancado aos pensamentos quase perigosamente parecidos com pseudo-filosofia pessoal. Um Tiago. Digamos que era este o seu nome e que não fora um instante atrasado na régua do tempo e se poderia quem sabe chamar Santiago, para passar de um mero instante de dúvida literária para um facilitismo quase mediático, ou parecido.

Tiago. Lembrava-se de a certa altura experimentar na noite, vestir-se de outro que não ele e ser Santiago e no fundo, livre do peso que tinha para si o ser próprio, desfalecer ao peso que tinha ser quem não era, porque afinal no instante exacto o nome valia o que valia e era ele, ser que era, que tinha de se desenrascar. Ou não.

Tiago amava Constança. Amava-a desde os tempos em que ambos tinham dividido o mesmo espaço nesse instante que se costuma chamar de infância e que uns sabem viver e outros nem por isso, e por mor de o não saberem passam anos presos ao que fizeram e principalmente aos instantes que não viveram.

Tiago amava Constança que, já agora, apenas se chamava quase como a terra, que dizem ter qualquer coisa a ver com Camões, porque por fatalidade a pequena fora órfã e criada por uma avó. Não que a avó fosse a sua fatalidade, longe disso, mas porque tendo nascido em Paris, donde já agora nenhuma cegonha pensou em lhe dar boleia, havia tido por nome, num instante, Constance, o que para a idosa e benemérita senhora sempre parecera um erro gramatical.

Mas Tiago amava Constança. Desde o dia em que a vira pela primeira vez, num instante que contado parece uma imagem batida, e continuou a amá-la, mesmo quando o tempo se encarregou de os separar, no espaço que uma pequeno vila do interior pode ter para afastar definitivamente duas pessoas.

Carne ou Peixe??? E a voz parecia agora a Tiago quase que uns decibéis acima da boa educação, ou então para ser mais correcto, da paciência que se pode ter com uma companhia que, de repente, se inclina para a filosofia do instante, o que quer que isso seja. Tiago estava ali. A mulher que amara ainda menino estava ela ali. E a distância que ali estava, também, convém referir, era aquela que vai do silêncio a uma palavra que dê início a uma conversa mais ou menos circunstancial, como se a ansiedade se transformasse num qualquer crime.

Tiago amara Constança ainda menino, foi o que ficámos a saber e agora ele era homem e ela mulher. Uma tão grande quantidade de tempo parece, por vezes, não ser tão maior que se não possa esperar calmamente e ignorar as coisas boas que se confundem com os nossos instantes depressivos. Recordar os bons momentos parecia para Tiago, um qualquer toque de nostalgia, mas com sentido a Constança, Tiago não carecia de nada que se lhe aproximasse, porque jamais fora para ela, o que ela se tornara para ele.

Tiago passou o tempo e coleccionou instantes, cresceu na idade e manteve o coração naquele instante que se permitiu reviver, apenas para si. Os sonhos também acontecem, mas aqui não os controlamos como queremos. Um jantar a dois parecia-lhe agora uma das suas fantasias, daquelas que se têm para que o tempo não pareça apenas aquele instante que nos ficou.

Um instante é um pedaço do tempo que não soubemos reordenar na colecção de dias que consiste a nossa própria existência. Reincidir em sonhos pode causar que os mesmos por tão sonhados, se esvaziem de conteúdo. Num instante uma ansiedade percorre cada pedaço de Tiago, que sabe que o próprio Santiago ignoraria o próximo instante que deveria escolher.

Nem Carne nem Peixe. Tiago afasta o prato, que é do dia, mas de um que já não é aquele que deveria ter sido muito anterior ao Tiago que ele apenas sabe reduzir a um instante que pode ser o seu agora. Tiago amara Constança. Um apetite que já não olha fixamente os lábios dela e um instante ridículo que apaga anos de instantes encenados e treinados com a cor que há nos instantes fantasiados. Tiago sabe que perdeu o instante, mas Constança descobre que perdeu muito mais. Levantam-se do jantar a dois. Ela paga a conta.

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