O NARIZ E AS AMAZONAS

Luis Garcia/ Junho 16, 2010/ Contos/ 0 comments

Na mesa-de-cabeceira dedos que dobravam pedaços de papel, em tiras mais ou menos similares aos próprios engenheiros da sua miserável situação existencial no agora. Havia em cada tira de papel algo de menosprezável, imbuídas que estavam de uma gritante humidade, que lhes roubara aquela espécie de beleza que se pode achar numa folha de papel, tenha ela efectivamente o papel que tiver.

Tomaz Eufrásio não pensara ainda naquela história da reciclagem, ou melhor, pensar até pensara, com aquele carinho que se entrega às boas acções que se fazem aos olhos dos outros, apenas porque era “in” e ficava bem deixar transparecer um certo ”elan”, assim um tanto ou quanto para o ecológico. Tomaz jamais se dera ao trabalho, forçado para ele, de perder dois segundos do tempo que entregava às suas “coisinhas” mais ou menos desinteressantes ou apenas vícios sem nome, para que lhe pudesse ocorrer que aquela folha de papel, suave imitação de lenço de seda, cuidadosamente passado a ferro, poderia ter sido noutra vida, um pedaço de jornal, marcado por uma qualquer notícia de arrancar de um simples sorriso a uma mal disfarçada lágrima de comiseração.

Uma porra de constipação. Andava tudo assustado com a gripe, mas supostamente o que ele teria, sempre com a salvaguarda de que o diagnosticara com rapidez e enlevo inerente ao interesse que o seu caso despertara, era uma simples constipação. Outro lenço, retirado com cuidado, ou falta dele, dependendo também da perspectiva de quem perdesse o mesmo tempo, para a observar aquele nariz avermelhado à força, que Tomaz oferecia a filosofias mais ou menos arrojadas acerca dos seus lenços de papel

Ainda outro lenço, retirado de um pacote que já é tão mais espectacular do que a mensagem que pretende passar, “isto é um lenço de papel, faça o favor de deixar de ser ranhoso e de se assoar”. A publicidade era algo de fascinante. Sempre a pensar na terceira pessoa, sempre com zelo que merecia a terceira pessoa e depois quando Tomaz se deixava “papar” por uma destas coisas que passam na televisão, encontrava-se aquele raro segundo em que se descobre que ou a terceira pessoa não existe, ou então trata-se de alguém que não nós mesmo.

Ás vezes entre uma assoadela e outra lá acabava por pensar que dantes ainda haviam aqueles lenços que depois se lavavam para voltarem a possuir aquele aspecto impar, longe da mácula que se podia oferecer de um nariz em crise existencial, para dar outro nome, que não ranhoso, a um personagem que de repente quase ganha mais preponderância que o próprio Tomaz. E pensar que aqueles mesmos lenços, elegantes e cheios de personalidade, aparavam as lágrimas das primeiras desilusões, das primeiras provas do travo a fel que depois mais tarde se diziam que eram depressões e coisas afins.

O lenço tal como o conhecíamos acabou. Tomaz não podia deixar de se encontrar mais ou menos triste, quando preso a este pensamento. Provavelmente mudáramos todos, os lenços e os ranhosos. Agora era tudo uma questão de papel. Tomaz aprendera limpeza após limpeza nasal a respeitar o acto de se assoar, como uma necessidade que deve ser levada a cabo com seriedade e respeito e um dia acordou a suar e a pensar na Amazónia. Não nas belas guerreiras que vira num filme pornográfico por lá andavam a desfilar prazeres, mas sim na floresta e nas árvores que desapareciam mais depressa que as belas que afinal não eram tão fáceis de encontrar, pelo menos para tipos como Tomaz.

Tornou-se para ele imprescindível pensar que se assoava a árvores, por isso duvidava do mérito das estatísticas ecológicas que apontavam as várias razões da desflorestação da Amazónia. Para ele era tudo muito nítido, o mundo estava flagelado de ranhosos como ele. Que porra. Ranhoso e ainda por cima a comprometer o futuro do planeta. Parecia um ciclo vicioso.

Vómitos e uma corrida ao WC. Falso alarme. Apenas uma dor no baixo-ventre. Nova dor e nova corrida ao WC. A constipação deixara-o naquela posição tão pouco poética, romântica, erótica, tão pouco tudo o que se pudesse imaginar sequer. Mais uma dor a fazer com que as ideias lhe saltassem da cabeça numa catadupa inebriante, e um suspiro para tentar aliviar a pressão que se torna cada vez mais assustadora, quando um pensamento lhe toma de assalto a mente. Pensar que algum daqueles lenços que tanto ajudavam o seu pobre nariz, fora já, quem sabe, papel higiénico. Tentou pensar no rabinho de um bebé e controlou a náusea por um segundo. Ainda assim não evitou devolver o almoço à atmosfera.

O telefone toca. Recupera a compostura como se a tivesse deixado pendurada algures no hall de entrada. Sai em direcção à sala e atende, é para lhe dizer que ganhou um colchão e mais não sei o quê. Encolhe os ombros como se a chamada fosse por vídeo. De estar deitado está ele farto. Deitado à vida, à força como à força vai mais um lenço, do pacote ao seu nariz e daí até ao caixote do lixo. Olha para ele como se lhe perguntasse “quem és tu?” .No depois apenas o silêncio e a sua voz para o quebrar, descobre-se como personagem da sua própria tragédia, saca de uma aspirina e engole-a sem água. O lenço é quem procura o ultimo momento, como se fosse possível racionalizar a razão de existir e descobrir uma verdade mais higiénica que o dia que já vai longo.

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