A MÁQUINA DO TEMPO

Luis Garcia/ Dezembro 13, 2010/ Contos/ 0 comments

A pequena pedra que guardara com o carinho de que podem gozar as pequenas lembranças quando a própria idade promete muito mais do que recordações, era a única coisa em que Beatriz conseguia concentrar-se quando os sonhos maus teimavam em visitá-la, já sem hora nem aviso. Durante muito tempo procurar ripostar as trevas que a invadiam. Hoje já só pedia que a envolvessem de uma única vez, para sempre.

Quando se deixava vencer pelo cansaço, perdoava as suas memórias e deixava que a revisitassem. Nas suas noites que se tinham tornado solitárias ainda podia sentir o frenesim dos dias alegres, de outro tempo mais feliz, quando a diferença entre o bem e o mal era tão mais fácil de distinguir. Fora esse o sonho a que se propusera que fosse a sua vida, viver esse tempo para lá da idade que foi deixando de ser a da inocência.

Eram duas da tarde, lá fora o alvoroço da cidade, as buzinas e os motores, as vozes como que consumidas no misto de barulhos já incompreensíveis se separados, vieram acordá-la dos seus fantasmas para o tempo que era o seu. Era sempre assim. Os sonhos vinham cada vez menos e apenas a escuridão mostrava tenção de ficar com ela, de mão dada com as suas ansiedades e receios.

Quando se tentou levantar da cama sentiu uma tontura que a fez desistir temporariamente de sua empreitada. Deixou que a cabeça voltasse a tocar a almofada como que para ganhar balanço e fez nova tentativa. Desta vez e com mais alguma da força que pensava já não ter em abundância conseguiu pisar o chão frio do quarto com os seus pés e lembrou-se que ali naquela quarto não tinha o seu tapete macio e quentinho. Olhou para os cortinados que ficavam ao lado da sua cama e viu no branco deles o vazio que se tornara a sua vida. Sentiu-se cansada e a tristeza voltou a invadi-la e as cores na sua cabeça confundiram-se numa apenas e o branco dos cortinados acinzentou e a escuridão voltou a tomar conta o seu coração.

Ouviu passos no corredor e sentiu-se arrancada às voltas que do seu pequeno mundo, olhou para a mesa-de-cabeceira em busca do seu relógio despertador, mas não soube encontrar as horas que queria possuir agora. Nunca mais seria aquela hora, aquela que a fazia ser feliz, e agora que tomava conta desse facto, dessa realidade tão cheia de presente, os seus olhos pareciam querer roubar-lhe a lucidez das imagens, quando se deixam invadir pelo sal das lágrimas. Sonhar era tão fácil, pensou, que custa crer que depois seja igualmente fácil aceitar dificuldade que é voltar a consegui-lo.

Tinha de conseguir escapar daquela escuridão toda que a inundava, mãos, braços, lábios, na boca o sabor a um medo que consome, como lume que arde com alegria pirómana. Os seus dedos brancos, fizeram-lhe lembrar por momentos os cortinados brancos, a mesma cor, o mesmo fim, escondeu a sua cara por detrás deles e ouviu a maçaneta da porta rodar. A luz invadiu a escuridão com uma violência só possível de alcançar quando se enche o vazio com o cheio ou quando se perde tudo num segundo. Beatriz sabia exactamente o que perdera, olhou para a mulher de branco que se aproximou dela e não teve forças para se levantar, tão pouco para se deitar e deixou-se ficar, sentada, os pés a meia viagem em direcção ao chão e a cabeça perdida em delírios.

O suor que lhe pingava da testa começou a refrescar as faces rosadas e os olhos, por momentos abertos, invadiram-se de um ardume que a fez acordar daquele outro sonho mau. Esticou a mão e sentiu outra mão, os olhos ardiam demasiado para conseguir abri-los, apertou a mão e o buraco por onde tomava que o seu corpo se escapasse parecia ter feito uma pausa, o movimento pareceu-lhe querer deixar de existir, como se a velocidade pudesse ter um querer. Abriu os olhos, a jovem enfermeira respondeu-lhe com um sorriso. As mãos unidas como se houvesse naquele ritual um quê de habitual. Mais um instante. As palavras da enfermeira soaram como um trovão nos seus ouvidos, tentou esconder-se e voltou a perder o controlo das suas forças, a mão da enfermeira ainda na sua e a saudade a querer apertar-lhe o coração com a mesma força.

Como quem conta uma coisa e depois lhe acrescenta outra, sem que por mal seja, apenas por causa de contar coisas com interesse, Beatriz voltou a afastar-se daquele presente, pegou na máquina do tempo, escondida algures no seu frágil ser e enviou-se, com as forças que ainda iam sendo suas para outro lugar, muitos anos antes. Fechou os olhos e deu um passo em frente, sentiu o trepidar da carruagem das memórias, num movimento tão diferente como o podem ser os passos de quem quer voltar a cometer os mesmos erros. A máquina do tempo parou, com aquele som tão característico das máquinas do tempo, seja ele qual for, agora parecia-lhe o som da máquina de lavar que o marido lhe oferecera num qualquer aniversário. E deu um passo… E a inocência que ainda guardava em si como um tesouro, que se esconde e depois se perde o paradeiro, foi dar-lhe aquela empurrão que se necessita sentir, quando se está tão a medo de voltar a ser feliz.

Quem a visse, diria apenas que tinha um sorriso calmo, mas jamais poderia saber onde estava agora Beatriz. Leve como naquele dia em que os pés de menina a haviam levado a tão lesta como a vontade de saber o fim das suas forças, só para descobrir que era tão nova que o fim era somente uma palavra com pouco ou nenhum sentido. Quem a visse, talvez deixasse um quê de nostalgia invadir o quarto e ir pousar-se como um raio de sol de fim de tarde, na parede, junto às fotos das recordações e dos nomes, quase todos eles esquecidos ou a esquecerem de saber quantos sonhos cabiam naquele quarto. Quem a visse talvez pensasse em coisas tristes, mas se soubessem haveriam de também saber como sorrir assim, sem esperar mais do que o sabor daquele mesmo momento.

A máquina do tempo estava de novo para partir, Beatriz deixou que os seus olhos abraçassem mais um presente e soube nos lábios aquele sentir que tem a saudade. Se pudesse contar aos outros como se ligava aquela máquina talvez fosse a tempo de lhes dizer tantas coisas… mas lembrou-se que já ninguém tinha muito tempo para lhe dar e susteve o ímpeto num pequeno tremer de lábio. Pareceu-lhe ouvir a voz da enfermeira, mas dentro da máquina já não soava a trovoada, talvez a aguaceiro e deixou que o motor voltasse a parecer aquela máquina de lavar roupa e deixou-se seguir, caiu-lhe um lenço branco no regaço e lembrou-lhe aquela tarde para correr sem fim.

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