ESTRANHA BELEZA

Luis Garcia/ Setembro 9, 2010/ Contos/ 0 comments

“Por entre os passos que se julgam, não há mais sentido de justiça que o próprio caminho que se decidiu descobrir”

A manhã surgira como num primeiro pequeno ritual. Aquele que atinge o auge da sua beleza quando o próprio sol dá ao dia a imagem que descobre no simples facto de não existir mais uma desculpa que possa inventar, para não oferecer o seu empurrão pessoal ao dia que está quase para nascer. Naquelas paredes cheira a vingança! A porta viaja de ponta a ponta numa melodia acesa no belo que pode existir em ouvir dobradiças oxidadas. Cada pedaço de som mostra o atrevido quanto baste, para ofertar aqueles momentos em que de forma inexplicável sentimos o vigor de um arrepio, como se fossemos resgatados à letargia de um momento e lançados de novo no caos da realidade.

Uma densa nuvem emerge de meia dúzia de euros mal gastos em tabaco de qualidade duvidosa. Esconde também aproximadamente meia dúzia de recordações calculadas e mal perdidas; num hall que se espera, seja só já mais de saída. Por momentos, arrancado à existência mergulhada numa passividade inebriante, Patrício Euclides, reconduz a frequência de um nunca mais. Descobre cada palavra imposta não se sabe muito bem quando e encontra cada sentido como uma decisão contundente, fingida e extremamente correcta.

De novo o hall, que é entrada também. Antecede o que se pode chamar de sala. Uma mesa, a cadeira que ampara quase pateticamente o traseiro pesado do Patrício e uma dezena mal contada de papéis riscados, a fingir um chão. Estranha beleza esta, a que pode existir num local, que já tratou a porcaria por outro nome mais ordinário.

Patrício Euclides teima em descobrir a sala. Revela as velocidades que os seus olhos verde melão perdem em contemplação. Como se uma qualquer taça velha e mal cheirosa, uma imitação barata de cristal francês, pudesse arrancar da penumbra uma garrafa meia vazia e o espaço restante que se consegue inventar para sonhar acompanhasse a viagem daquela solução oxigenada.

Os lábios que já beijaram o amor do Patrício, soltam pequenas palavras inodoras. A embriaguez lava o sentido que qualquer outra, interpretação, procurasse encontrar por entre o hálito impregnado de uma aguardente que melhor ele usara para sarar a ferida que teima em enfeitar-lhe de escarlate aquele joelho demasiadas vezes flectido.

O Patrício sabe o significado daquela sensação. É assim como se pudesse repetir uma palavra, no segundo que se segue à hora de ir embora e saber de cor a resposta que ouviu mais vezes. Porque foi ele mesmo que a inventou, e a coragem para fazer aquela pergunta sabe ao mesmo amargo que fere agora o seco que arrasta nos seus lábios.

Segura com medo. Treme bastante ao ouvir os sons que não consegue compreender e descobre nos apêndices dos seus braços, o refúgio que procura no vazio. Talvez mesmo o abraço que se foi adiando. Nada do que tem hoje lhe parece melhor do que aquilo que pode sonhar para possuir, quando amanhã for aquele momento para saber tudo o que poderia ter conquistado. Das mãos que então tremerem, os olhos verdes dificilmente poderão julgar qualquer movimento que não compreenderem, para além de uma necessidade absurda de sentir o sabor de um abraço

No verde dos seus olhos, haverá quem jure vê-los grandes, como se pudessem rivalizar duas nozes, perdidos e inflamados, como um grito quando desvenda o mistério da tristeza que se encontra há demasiado tempo numa ressaca que se foi evitando.

Os olhos verdes despertam paixão. Também sabem dizer quando é tempo de ficar sozinho e as mãos ainda a tremer e a cabeça que não para de pender, faz toda a vontade às pernas que seguem um caminho inventado de passos improvisados. Lá fora apenas uma brisa que imite os seus pés pode correr na escuridão encontrada e roubada às luzes da cidade e da sua solidão. Não existe uma única rua que se possa confundir com a sua e ao primeiro vómito, as luzes que se confundem nos olhos que não se querem agarrar à estrada que se decidiu arrastam-se para uma queda que se torna inevitável.

Aperta o que há de seu entre os braços que conhece bem demais, pelas marcas que foi juntando. Uma a uma, como se cada beijo no asfalto fosse premiado com uma recordação para exibir com vaidade. Recebe o ar fresco da madrugada como se fosse uma medalha e contempla as luzes que por fim se vão tornando recordações. Como se procurasse uma metade de amor-próprio que pudesse exibir orgulhoso no caminho que fingisse saber para casa.

Invade-se de uma vontade de sentir um toque em todo o seu corpo. Assim como se houvesse uma capacidade de amar que estivesse escondida, a uma distância abaixo da sua epiderme. Necessita desesperadamente de um banho. Inventa um mar tão conveniente, rebola pela areia da praia com as dunas do esquecimento por cenário e adormece os olhos já salgados demasiadas vezes. E quase sonha. Desperta. Como se houvesse no seu sonho sensações que o queimassem, o que resta da garrafa que chamou de sua ao sair daquele bar oferece-lhe a companhia de que precisa para o único encontro que terá até ao fim daquela noite. A música. Quase pode ouvir ao partilhar o ultimo momento de prazer que se pode descobrir no fundo de uma garrafa, no vício que há nas suas mãos, um segundo de uma alegria imensa que não se pode compreender.

O vento volta a soprar, o carrasco das longas estradas empoeiradas, finge-se de um impulso como se estivéssemos a falar de novidades e uma nova história nascesse deste momento quase hipócrita. Quem ouve o vento sabe que não o pode compreender com a facilidade daqueles que conhecem o seu toque. Quem conhece o vento no auge da madrugada tem apenas que descobrir que não se pode esconder. Aqueles que sabem a verdade escondem a dor nas garrafas que vão amando. Os outros ajeitam o corpo entre o quente e a segurança que se pode encontrar no abraço que se rouba ao segurar a mão de quem está junto e partilha o leito. Como se a verificar da possibilidade do assalto da solidão. Quem ouve assim o vento simplesmente volta as costas e volta a dormir.

O Patrício sabe quem é. Sabe de que lado do seu sonho escuta ele aquele vento. O som seco de uma porta que se fecha acorda o que ainda se pode traduzir por alerta, num ínfimo espaço do seu ser. O som do motor, a velocidade que se inicia, a janela que se abre e o criar do seu próprio vento. Aquele que não poderá pertencer a mais ninguém. Talvez fosse possível naquele mesmo segundo, lado a lado poder retirar daquele momento os dias que já se foram, aquilo que quis esquecer. Tudo somado ao possível do hoje com a certeza das horas passadas e descobrir que o erro existe, na conta que se desconhece, só porque nunca se segurou a vontade necessária para um dia mais tarde tornar melancolia aquela noite. Tão estranha por ser tão repetida.

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