A CANTORA

Luis Garcia/ Junho 8, 2010/ Contos/ 0 comments

Quando os seus dedos se deixavam descansar sobre o teclado do seu piano, os sons pareciam querer soltar-se, como se fossem pequenas crianças, quase adolescentes que se ofereciam ao agastar da vontade de experimentar as coisas que eram novas. A cantora às vezes perdia-se no movimento e pousava a voz na música, como pássaro que encontra um ramo de árvore para ali deixar o cansaço que traz nas asas. Oferecia-se nesses momentos à música como se oferecesse o seu corpo às mãos de um amante e descobrissem juntos cada mistério encenado num murmúrio projectado, pista de outros movimentos que não as notas do sol e dó.

Um sorriso. Uma gargalhada nervosa, como os pés de uma criança a criar sons numa corrida soalho fora, em busca da brincadeira que já vai tarde de alcançar. Quarenta pares de meninas dos olhos, cores em afectação, arriscaríamos dizer, a qualquer gosto e a redescoberta da beleza de dois acordes sequenciais em harmonia com o erotismo da musa, ou para outros, apenas mais um belo par de mamas. A cantora levanta-se do piano como se estivesse no aconchego da sua sala de estar e pega numa chávena de café, pousada, como que perdida, numa mesinha perto de si. Sorri.

Silêncio. Arrasta-se a ausência de algo sonoro que se dê ao trabalho de preencher aquela sala que não é de estar, mas onde estão um e outro e ainda mais alguns que se não conseguem descrever convenientemente, talvez pelo escuro que grassa por ali a meia-luz. Outra gargalhada nervosa calada por uma tirada de um velho de cachecol e cigarro no canto da boca, mais uma rouquidão quase límpida de preconceito que só se consegue quando a idade deixa de meter medo.

A cantora deixa que o pedaço de cafeína a relance na performance que trouxe para a noite, quase garantia que aquela é muito diferente de outras, não só pelo espaço mas principalmente por quem ouve e num instante parece-lhe que houve outras noites em que repetiu elogios iguais. Corre o relógio e o piano volta a gritar baixinho. As palavras que se não podem dizer ficam hirtas na imaginação de que está ali para saber coisas daquela voz. A melodia, a mesma que acende no velho a vontade de um erotismo que não reside no desejo de um corpo, mas no prazer de uma voz que se pode guardar.

Onde o velho está, tudo aquilo lhe parece muito simples de perceber. Talvez seja o único par de ouvidos daquela sala a ver a verdadeira cantora, despida da pele que trouxe para impressionar salas e cadeiras. O tempo envelhece duas vezes quando se pensa muito nele, por isso é que a música pode ser analgésico de lágrimas e moléstias do coração. Entretanto o Jazz faz-se dono da sala, o fumo confunde-se com o tecto falso e o álcool corre sem vergonhas. A cantora embriaga quem a ouve e talvez enlouqueça quem entender a sua voz, mas o tempo não se vende aos vícios da alegria. Passará, incólume e faccioso, como erosão nas rochas à beira Atlântico, tudo será voz, tudo melodia, tudo história pessoal, se relembrada.

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