APARÊNCIAS IMPROVÁVEIS ACARRETAM IMPONDERÁVEIS

Luis Garcia/ Maio 29, 2010/ Contos/ 0 comments

Florbela considerava-se dona de um corpo que podia, devia, moldar como quem almeja a chegar perto, muito perto da noção de perfeito que é a nossa e que, curiosamente o não seria noutros tempos, tal como essas mesmas noções o não parecem para nós no nosso tempo. Florbela fingia laivos de desinteresse quando o assunto era aquela parte que vem a seguir ao “Mente sã…” e bocejava imitando o que julgava serem características de um ser inundado de aborrecimento, como se a conversa, enfadonha que fosse, lhe não desse mais vontade do que um desfilar da cor do marfim que era a do seu sorriso.

Regalava-lhe a mente recontar os olhares mais ou menos ordinários que recolhia na rua, como quem sai ao campo em busca de cogumelos sem saber se, os mesmos, são ou não venenosos. O seu veneno talvez fosse a beleza e era sabido que não houvera ainda qualquer notícia de um cogumelo que tivesse sido fatal em benefício, ou acto trágico, próprio. Sem que tivesse que perder muito tempo a reflectir, Florbela tinha consciência, aliás Florbela possuía a consciência, aquela que muitas vezes nos falha e nos dá aquele défice de clarividência, de que era boa, mesmo mas mesmo muito boa.

Costumava sair de casa e ignorar o homem do boletim meteorológico. Agradava-lhe esticar ou encolher estações a seu belo prazer, como se fosse seu o poder de dizer ao tempo qual a cara que terá o tempo hoje. Era confiante. Confiava em cada pormenor e nada ficava ao acaso quando preparava aquele primeiro passe do desfile diário. Sabia que tinha um peito seguro caracterizado por uma rigidez sensual que costumava provocar peso a mais nos queixos dos homens. Era mais ou menos como se estivéssemos a falar de um monumento fálico que se pode encontrar numa tarde de aventura, com o olhar aberto e o conhecimento de causa, para poder apreciá-lo em todo o seu esplendor.

Os seios. Florbela amava-os e fazia deles a cereja, neste caso talvez fosse melhor falar de meloas, no topo do bolo, ela claro está. Agradecia ao underbra, descoberta valiosa em tempo útil, que lhe retirara aquele quê gelatinoso que a irritava amiúde, sempre que comparava num momento seu ao espelho, o “nhotinho” com o “dexinho”, nomes mais fáceis de perceber se pensarmos nos lados para os quais olhava quando apreciava o seio canhoto e o seio dextro.

Costumava gastar horas na Internet em busca de truques e promessas de excessos retirados ao seu corpo, como se ela fosse já uma entidade fora dele, apenas como o objectivo de o tornar, a cada dia, uma perfeição mais perfeita que no dia anterior. Um dia encomendou uma mistela qualquer feita à base de pepino e descobriu uma alergia que desconhecia poder possuir. Aguentou firme, na caixa dizia que o resultado final seria compensador e comprou mais três caixas antes que uma noite, não sabe bem porquê tivesse de recorrer às urgências, por causa de estranha alergia que a não largava. Esperou e melhorou e quando o médico a atendeu afinal já nem se lembrava bem de que se queixar. Saiu e ainda pôde vislumbrar o efeito “peso no queixo” que tanto gostava de infligir aos homens.

Mas ela também sabia o que era o outro lado da beleza. Sabia e estava disposta a pagar o preço cêntimo por cêntimo, até que a sua divida estivesse completamente saldada. Deleitava-se por isso a ver os outros comerem, com aquela vontade que só a ausência do medo de pôr mais uns gramas na balança de casa pode oferecer. Ir até à Pastelaria ao fundo da rua e pedir uma garrafa de água, natural, sem gás era quase um momento de êxtase, e Florbela gozava cada segundo como um momento maroto, em que tivesse feito qualquer coisa que afligisse a moral e os bons costumes. Os seus olhos bailavam de mesa em mesa, passando pelo balcão e abocanhavam com satisfação as migalhas que os outros deixavam cair desinteressadamente. Uma rapariga com ar de vulgar entrou e pediu um pastel de nata. Tocou-o com os seus dedos finos e longos e comeu-o, como se fosse aquele o ultimo bocado de doce ao cimo do planeta. Florbela retraiu os dedos dos pés dentro das botas e escondeu um laivo de inveja.

Por cada aventura no mundo dos doces, Florbela permitia-se a si própria mais uma sessão de ginásio para recuperar, porque o povo dizia que os olhos também comem, e ela não queria arriscar, minimamente que fosse. Num dos desvios, à saída da Pastelaria, um gajo qualquer disse-lhe que com ela fazia isto e aquilo e não contente com o conteúdo fez da forma o mais ordinário que conseguiu. Florbela irritou-se. Florbela respondeu como julgou que deveria responder uma senhora. Mas dentro, bem dentro de si foi como se aquele momento se tivesse tornado o seu pastel de nata privado.

Mais tarde, depois do ginásio, deu por si já descalça a pagar ao sofá uma noite de descanso. Chegara a casa e, num ímpeto tirado a papel químico do dia anterior, correra ao WC onde guardava a balança, amiga e inimiga que a apoiava nos bons, os leves, e nos piores, os pesados, momentos. No sofá, na balança, na pastelaria, no escritório, no autocarro, na sua vida Florbela tornara-se aquele momento de análise, igual ao inicio do dia tal como o era também no seu final. Um ponteiro que mexe muito pouco com o peso do seu corpo, tudo normal corre ainda a tempo de não sujar o seu sofá, e o jantar já não a fará sentir culpada, como se sentira na tarde em que vira o pastel de nata desaparecer entre os lábios da outra, a vulgar.

Share this Post

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

*
*