O JORNAL

Luis Garcia/ Outubro 10, 2010/ Contos/ 0 comments

“As letras são as mesmas, o sentido é que pode ser outro”

Olhou com orgulho para as folhas de papel que agrupara cuidadosamente e agrafara ainda com mais enlevo, para poder segurar agora naquelas pequenas mãos alvas quase como o próprio papel que disposto assim fazia como conjunto o jornal que sonhara criar. Sentiu um sabor de vitória, que ao invés de poder denominar muito simplesmente pela palavra que a definia, talvez por desconhecimento, teimava em apenas deixar correr os segundos e entregar-se sem mas, ao sabor do próprio momento.

Talvez o nosso maior problema seja esta grande vontade, diria mania, de tentar arranjar nomes que definam cada um dos momentos em que sentimos algo, seja que nos faça rir, sorrir, recear, ansiar ou pura e simplesmente chorar., mas que efectivamente se distinga dos outros momentos, em que tantas vezes parecemos adormecidos, à espera, apenas à espera.

No verão passado, sabia-o agora, era demasiado nova para fazer algo tão perfeito como as páginas que segurava orgulhosa na sua mão esquerda. Sorria perante a inocência dos 10 anos, entretanto parecidos tão distantes pelos doze meses em que lhe parecia, tanto amadurecera. Aquele segundo número do seu periódico, contendo a periodicidade que se podia exigir a quem levava o jornalismo demasiado a sério para brincar com ele em tempo de aulas, levantou um sorriso nos seus lábios de criança, apenas interrompido pela preocupação, outro sentir que na altura apenas podia conhecer sentindo.

Recordar-se ia muito mais tarde, que jamais a ansiedade a invadira naqueles anos, e embora não soubesse a razão para tal fenómeno, nunca qualquer preocupação a apoquentara muito antes do próprio problema surgir para ser resolvido. Mas enfim, naquelas férias, uma grande preocupação começava fazer-se sentir derivada do problema que acarretava a própria tarefa que se propusera levar a bom termo. Agosto escaldava, era o tempo em que as tardes de Verão duravam exactamente o tempo que uma tarde de Verão supostamente encontra na infância.

Quase que o pai a convencera a fazer a sua opção pelo jornal de parede, mas não, ela sabia que não havia nada como sentir o peso de cada exemplar, e a alegria de o manusear ao belo prazer de beber cada uma das ideias feitas em palavras, que se pretendem soltar do suporte. Agora, naquele dia, ela sabia que as próximas semanas seriam passadas a copiar o original que tão brilhantemente construíra com a velha HCesar que a mão resgatara a um velho que percorria as ruas da aldeia, com uma bicicleta para amolar as facas com que a mãe, as mães de todos, faziam o meu, os nossos, almoços e jantares.

A máquina de escrever, as colagens dos recortes que ia fazendo, e a sua própria imaginação, faziam o resto e a notícia ganhava forma. Anos mais tarde, ao permitir-se um momento de nostalgia, haveria de comparar as notícias que era paga para escrever com o preço que lhe custavam as noticias que criava para o seu próprio jornal.

Haveria de sentir saudades de alguma coisa que a impedia de dizer algo que não tivesse positivamente certeza, como naquele dia em que desistira de publicar a notícia da fuga da galinha da vizinha, por desconfiar da veracidade da mesma, quando a vizinha lhe ofereceu um prato de canja acabadinha de fazer.

Adiante, nesses dias havia um sentir que não tinha nome, mas que se insinuava a cada linha que escrevia. Quando em adulta voltasse a escrever, aprenderia, muito à sua custa, que existem regras e coisas como a ética, mas nem isso a voltaria a fazer sentir aquele sabor de conquista e vaidade que só a jornalista que foi naquelas tardes lhe havia proporcionado. E embora fosse elogiada a cada passo em frente dado na sua carreira, haveria de sentir sempre uma falta, um vazio que quando estivesse quase a preencher, haveria de se reposicionar e fazer de novo um vazio e, se calhar, nunca mais sentiria aquelas tardes varrerem-lhe o corpo com a força, que lembrava, quase com mais dificuldade que saudade.

Olhou com orgulho para as folhas de papel que segurava, já feitas jornal, o seu jornal, e no meio da alegria, foi descobrir exactamente na primeira página, a cara que pretendia para o seu jornal, perfeita, um erro ortográfico que a arrastou para uma sensação de desânimo, quase imediato. Inspirou uma mão cheia de ar fresco, o possível de conseguir de bom grado, naquelas tardes em que Agosto fazia jus ao nome, susteve com alguma facilidade e fechou os olhos como que em busca de uma solução que a não obrigasse a rasgar o seu trabalho em tiras e pedaços, para depois começar tudo de novo. Soltou bem devagar cada pedaço de ar tomado momentos antes, como se a cada pedaço de tempo libertasse também pouco a pouco a sensação que a viera apoquentar.

Deixou, depois, que os seus lábios desenhassem um sorriso. Aquele era exactamente o tempo em que começar tudo de novo custava absolutamente nada, e dava uma sensação que mais tarde teria como adquirido que já alguém definira por prazer. Naquela tarde, ela não o soube exprimir mas sentiu-o, aquilo que naquele outro dia em que a melancolia a fez viajar no tempo haveria de chamar prazer, um prazer do caraças acrescentaria a menina crescida ao lembrar apenas a menina.

Share this Post

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

*
*