EU E TU

Luis Garcia/ Maio 25, 2010/ Contos/ 1 comments

A noite fora uma noite como teimavam em ser as noites, lugar de descanso e de sonhos acesos no escuro do manto colocado que é aquele que enfeita o abraço que vem com o avançar dos ponteiros, em direcção à madrugada. A ausência de sons costumeiros assustava os sentidos de quem estivesse disposto a acordar sem lamentos e tentativas de fuga impossível ao tempo guardado no relógio da mesa-de-cabeceira.

E no depois os olhos que abriram num azul cor de céu, arrancado àquela imagem que se guarda de uma tarde perfeita. Os lábios tentaram acompanhar os movimentos das pálpebras, como se prometessem um bailado sensual, com a sensualidade que se pode roubar ao que sobrou de uma madrugada de sono.

Achou-se invadido de uma vontade quase fingida de larapiar o seu corpo ao calor dos lençóis que ainda assim quase lhe davam uma protecção de uma cor, daquelas cores que às vezes encontramos num abraço. Uma brisa fez uma pequena promessa de manhã a querer espreguiçar-se, as pontas da esperança e do medo que se confundem no peito, com a certeza dos mapas e dos verbos no pretérito perfeito.

Por esta altura já só falta desvendar quem é a nossa personagem. De quem falamos? Quem escolhemos para habitar a escrita destas parcas linhas. Quem reviverá momento a momento as palavras que forem lidas, na eventualidade de o serem de novo, ou não! A personagem pode ser um homem, pode ser uma mulher. Para ser mais justo, pode ser uma mulher que a certo parágrafo, mais ou menos discreto, dá luz um homem. A personagem que sem o sarar que há na infância, para as feridas que faz depois o tempo de adulto, resolve prosseguir com a arrogância que se pode deixar possuir com a idade que vem com as certezas.

Quando acordei vi sem dificuldade, claramente, que as mãos que arrancam o sono aos meus olhos semi-cerrados eram menos ásperas demais para serem a do homem que se aconchegara na solidão da noite anterior. Quando me levantei, indaguei o que sabia e o que não sabia, quando pude observar que o tamanho dos meus pés era tudo menos a donzela que parecia querer habitar na ponta de cada um dos meus dedos.

Quando acordei, o mundo tinha acabado. Abri a janela. Lá fora só a recordação do mar que nunca vi, nas manhãs que foram as do meu quarto. Quando acordei não sabia se eu não era já mais tu. Quando acordei estava sozinho e nem por isso deixei de acreditar em nós.

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1 Comment

  1. “(…) daquelas cores que às vezes encontramos num abraço.” (…)

    Para mim, bastaria esta frase para definir todo o restante texto… de facto “abraçar” é bom… e abrir o nosso “leque” de cores, absolutamente livre, ainda é melhor (no sentido que colorir também poderá ser atribuir propriedades…).

    Um abraço.

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